segunda-feira, 10 de julho de 2017

Caminhos do Sol - 3
Por Jorge Ferrão


Vamos continuar a visitar mais umas praias de Moçambique... e a ficar cheios de inveja por lá não podermos estar! Mas não é difícil! É só programar para as próximas férias!


A Praia do Mia

No começo era apenas a praia da Cabaceira Pequena. Os residentes locais, pouco propensos a nomenclaturas, sempre a trataram-na apenas como Mangal. Na realidade, este é um dos mais bem preservados mangais de Mossuril. Em 2001, muito por culpa de um fotógrafo Holandês, a praia do Mangal foi transportada para o mundo. Depois, reconvertida em projecto, ganhou nova denominação. Passou a praia do Mia. Mia Couto. Duvido que ele saiba. Ou se alguma vez saberá. Nem acredito que ele se importe, desde que a praia continue sendo respeitada, preservada e usada para o bem-estar e benefício de todos.
Foi, então, o dito cujo holandês de câmara a tiracolo quem decidiu, ainda no longínquo 2001, idealizar um projecto turístico para Cabaceira Pequena. Do livro, Árvore do Frangipani, do escritor Mia Couto, extraiu um trecho que reflectia a Cabaceira nos dias que navegam. “... Aqui é onde a terra se deita, onde o tempo se despe e onde os Deus vêem rezar”. Melhor descrição não poderia ter sido feita. O letreiro tem alguns erros ortográficos, mas disso ninguém se importa. Não existe transeunte nenhum que não pare para correr suas vistas pelas letras, agora perdendo seu brilho. Assim, sem mais e nem porque, o local virou praia do Mia. Pura criatividade de banhistas.
A sentença ditada pelo escritor sobre a Cabaceira Pequena já antes havia sido feita pela própria natureza, passam-se 300 anos. A Cabaceira Pequena é um lugarejo discreto, mas sinistro. Acordou, um dia, às escuras e assim permaneceu durante décadas. Depois da partida do Governador Pereira do Lago, antigo Governador-geral da Ilha Moçambique e, consequentemente, de Moçambique, a terra se deitou irremediavelmente. As monções mais não fazem que aprimorar esse sono. Se a ausência de qualquer progresso tem sido espantosa, pior tem sido a nudez que tomou conta das vergonhas e das intimidades das suas gentes e da própria natureza. O local anda tão esfarrapado, que os Deuses se recusam a qualquer que seja a reza. O único que ainda cruza os dedos é o supremo do Mangal. Os corais, esses afastaram-se tanto do mar, e viraram museus. Cabaceira Pequena pode ser o único lugar do planeta onde o gigante mar se assustou e regrediu.
Cabaceira foi terra predilecta de Vasco da Gama. Árabes, Persas, Chineses e Turcos. O poço de água doce que alimentou caravelas e naus, permanece intacto, porém a maior parte do ano sem os líquidos condignos. Outrora, quartéis do Capitão Rufino, as últimas referências assentam nas famílias Matiria Machon e Long Fat e ainda do português Massa. Agora, nem as sombras dessa elite se deitam mais no local. Os esqueletos dessas sombras sim, vagueiam desafiando as contrariedades do fotógrafo holandês, que com mestria fez de suas fotografias vida. Os investidores criaram a empresa Frangipani Limitada. Foi um italiano que deu o seu nome a árvore. Mossuril é um paraíso de frangipanis. Para complementar a obra, a empresa Frangipani designou o projecto por Varanda. Não é tão evidente que seja Varanda do Frangipani. Mas, é Varanda. Para ousar e inovar a Varanda gerou o Coral Lodge.
Coral Lodge 15.41, é um conjunto de 10 bangalós muito expostos, aos ventos e almas, mas preserva excessivas privacidades para os humanos. Os quartos, ou quartos-salas são de tal maneira amplos que dispensam ares frios artificiais. Somente as camas escondem os ares que a natureza nem sempre nos oferece. Bem por cima de cada cama, tem um ar condicionado. Parece, de forma acertada, uma medida de austeridade, em momentos de contenção, e que se alinham perfeitamente com os cuidados ambientais.
Coral Lodge é, também, o nome de uma instância turística no Panamá, que não tem nada a ver com o Coral Lodge 15.41 que são as coordenadas para chegar ao local. O acesso pode ser feito por Nampula, Lumbo, Pemba ou Nacala. Duas horas a partir do aeroporto de Nampula e ¾ de horas de outros pontos. No começo eram cerca de 50 trabalhadores locais os que, com bravura, aceitaram o desafio de construir algo na ponta mais estreita da Cabaceira. Misto de material local e convencional. Hoje o número de funcionários reduziu para 40. No grupo, alguns holandeses, incluindo o chefe da Cozinha.
Uma vez no local o que mais chama a atenção, depois do letreiro do Mia, seria até o Mangal. Mas, os tons azuis, e azul-marinho das águas, em momentos de maré cheia, deslumbram. No interior do Coral Lodge 15.41 os móveis de madeira de coqueiro, fazem inveja a quem vive importando madeiras de outras árvores ou países. Nunca essa madeira foi tão valorizada. Agora tenho o coqueiro como amigo e aliado. Para reforçar e ressalvar o brilho e o requinte desta soberba madeira, o lodge decidiu por lâmpadas de LED, todas elas com apenas 1 volt. Assim, foi decretado um inconformado romantismo de luzes. Engana-se quem julgar que os livros do Mia estariam espalhados por todas as suites. Só existe um único livro. O livro já desapareceu algumas vezes, mas por algum milagre retorna ao SPA. Aliás, o SPA também vale mesmo a pena. Faltaria incorporar mussiros, argilas (nhtope) e as algas da Ilha. Teríamos, então, um SPA mussurilizado e internacional. Melhor, mesmo, seria ir passar a temporada, usar o SPA e assegurar que leva consigo o livro ou os livros do pseudo proprietário da praia.
Virou moda os turistas doarem uma gorjeta para um Fundo comunitário. Coral Lodge 15.41 assimilou a moda. São apenas 2 dólares. Ideal deveria ser 15 e 41 para fazer jus ao nome. Como faria bem que existisse algo regulamentando para estas doações. Os comunitários da Cabaceira ainda pensam como usar o fundo. Os proprietários do Lodge querem ter os detalhes do que será feito com a massa. A letargia dos residentes vai perdendo as rotinas. Visitas guiadas atrapalham os continuados repousos. Busca-se um entendimento sobre a história de um povo que vive de história e de passados. Os diálogos mais parecem monólogos. A mímica resolve, no final.
Coral Lodge 15.41 é a mais recente novidade das praias de Nampula. Já recebeu turistas da Europa, Ásia e dos EUA. Por ser de 5 estrelas, os pacotes oferecidos, vão de encontro às constelações financeiras. Porém, para além da variedade de produtos turísticos, os visitantes podem desfrutar de um regado velejar pela Ilha de Moçambique, de uma abundante fauna marinha e ainda mergulhar nos últimos corais que resistem ao tempo e as mudanças climáticas.


O Misterioso Lago Ntandazimu


Ntandazimu, é como os locais o designam. Um pequeno e estranho lago no interior da Ilha Vamizi. Por ser de água salgada, quase não é visitado. Apenas para um ritual anual. Não se sabe se os espíritos ajudam na pescaria, mas os poucos ilhéus, sobretudo os mais jovens, desconfiam de tanto mistério. O lago tem aproximadamente 10 metros de diâmetro, águas límpidas, de cor verde turquesa e, em dias de sol intenso, as águas se confundem com um grande lençol estendido por baixo da vegetação. Em tempo, nem por isso tão remoto, um caçador disparou sobre um conjunto de rolas, numa árvore próxima do lago. Era final de tarde e ele desesperava por alguma presa que fosse. Depois do tiro, uma das rolas resvalou e, enquanto ajustava os últimos equilíbrios, caiu no interior do lago. Ali ficou prostrada e sem indícios de que fosse afundar.
O caçador seguiu com os olhos seu percurso e, sem muito esforço, deu conta que a presa estava bem próxima. Esfregou suas mãos de contente. Antes que a rola desaparecesse nas profundezas do lago, decidiu despir-se e buscar seu troféu. Assim que mergulhou, de cabeça, sentiu que embatera em algo inexplicável. Tentou, enfim, nadar e parecia que a água lhe amarrava os braços. Atordoado, suspendeu os movimentos e deu conta que flutuava sem esforço, bem próximo da sua presa. Valeu-lhe o grupo de pescadores que, alertados pelo estrondo, foram seguindo a cena a par e passo. Aproximaram-se e esticaram-lhe um caule de outras funções. Trazido de volta a terra firme, o caçador sentiu sua pele cozida. Continua vivo, em Mocímboa da Praia, porém debilitado e sem munições. Nunca mais caçou.
Outros episódios sucederam-se no lago Ntandazimu. Regra geral, qualquer criatura que por descuido ou infelicidade caí no lago nunca afunda. É a maldição dos espíritos. Cada um dos episódios é narrado em diferentes sabores e tons. O lago Ntandazimu não possui nenhuma espécie de vida. Não existem peixes, nem algas ou outras plantas aquáticas. A explicação para tamanha raridade advém dos altos níveis de salinidade da água. O lago fica a sensivelmente mil e quinhentos metros do mar, porém bem abaixo do nível do mar. Esta localização confere características típicas de outros mares interiores, com iguais ou superiores níveis de salinidade. Os estudos provam que para cada 100 mililitros de água salgada, nos oceanos e mares normais, existem cerca de 3 gramas de sal. Todavia, nas águas interiores e sem misturas, para a mesma proporção de água, chega-se a registar mais de 30 gramas de sal, quer dizer, dez vezes mais que o normal. A elevada salinidade explica-se pela evaporação natural e pelo facto de quase nenhuma água doce fluir para aquele lago.
Da última vez que espreitei o lago Ntandazimu conversei demoradamente com o ancião que simultaneamente faz papel de guarda e porta-voz entre os espíritos e os visitantes. Ansiava por novos episódios, mas ele não tem mais nada para contar. Agora, fá-lo a troco de desembolsos. Recordou-me que as visitas ao lago continuavam proibidas. Ainda assim, visitantes interessados - meu caso - se sujeitavam às taxas de conveniência. Quanto maior o interesse pelo lago, mais caro o acesso. Afinal, aquele era seu trabalho e os pouquíssimos residentes locais haviam a ele confiado, essa dificílima tarefa.
Estudos oceanográficos sugerem que lagos e mares interiores possuem, em suas águas, não apenas cloreto de sódio, como também magnésio, potássio, cálcio e brometo. Esta combinação se mantém intacta por força da ausência de movimentos da água. Mergulhar é praticamente impossível. Nadar exige técnica apropriada. O ideal é flutuar. Até quem jamais nadou, pode flutuar que nem uma rolha. O mar morto, é disso um exemplo; e aos visitantes, é expressamente recomendado, que observem cuidados extra especiais para nadar. Os banhistas devem, invariavelmente, entrar para a água de costas, não molhar nunca a cabeça e permanecer calmos. Mais interessante ainda é o facto de estes lagos possuírem efeitos curativos excepcionais.
O Lodge de Vamizi, agora galardoado como um dos melhores do continente africano e do mundo na sua categoria, deveria explorar, sempre com o seu guarda, os valores terapêuticos do Ntandazimu. A climoterapia, que combina banhos em águas salgadas (talassoterapia) com os banhos de sol (helioterapia), seria um complemento na diversificação da oferta e actividades recreativas. Um SPA para lá de natural. Todos, mesmo todos, sairiam a ganhar. O turismo nacional ficaria reconhecido pela descoberta. Só peço que seja explicado ao guarda a razão de tanto mistério.

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