quinta-feira, 27 de outubro de 2016


Do Brasil
e do Vaticano

Cheio de boas intenções está o inferno! E assim estou eu, que já prometi a mim mesmo, e aos que têm coragem de ler o que escrevo para o blog, que não falaria mais sobre as “coisas brasilienses”. Mas é difícil ficar muito tempo com a garganta cheia de podridão e não a poder pôr para fora.
Nada de falar em política porque então a boca enche-se de trampa, para não usar outra palavra de tonalidade mais sonante e malcheirosa.
Vamos só a “pequenos detalhes” da vida quotidiana.
O juro anual do cartão de crédito atingiu os píncaros da insanidade: 480% ao ano! Façam as contas. Quem estiver um ano devendo dez mil reais e finalmente tiver a sorte de arranjar alguma graninha para pagar vai ao banco e recebe uma notícia esplendorosa: afinal você SÓ deve $ 58.000,! Beleza, né?
O cliente diz logo que não paga e deixa correr. Ao fim de um, dois, três anos, o banco quer resolver a situação e propõe um descontinho, quando a dívida já vai, especulativamente em centenas (58 mil no 1° ano, 116 no 2°, e 570° no 5°). Melhor negócio do que isto só abrir uma igreja e fazer milagres aos domingos e dias de feriado!
Há dias precisei de uma moto serra. Pequena, elétrica. Pesquisei e, por acaso, fui parar a um site em Portugal. Achei estranho o preço 29,90! Só depois reparei que era em Euros, o equivalente por estas bandas a cerca de cem Reais. Depois encontrei a mesma máquina, no Brasil, só que o precinho era um quanto diferente: $ 195,00. O dobro. Mas também não é para admirar. O brasil é mais de 100 vezes maior que Portugal, deve vender milhares de motosserras mais do que em Portugal, e paga, de certeza muito mais impostos.
O jornal de hoje traz mais uma notícia surpreendente: em 2015 foram cobrados a mais, por engano, SÓ mais de R$ 1.825.000.000, - isso mesmo um bilhão oitocentos e vinte cinco milhões de reais –nas contas de energia elétrica dos consumidores. Engano curioso! Nunca mais vão devolver esse dinheiro extorquido do zé-pagante!
Só mais uma: na semana passada a Petrobrás, a “senhora” do maior escândalo de corrupção da história da humanidez, anunciou que ia baixar o preço da gasolina, já que o preço no Brasil é igual aos mais altos níveis do mundo! E temos petróleo. Magnífico.
No dia seguinte as distribuidoras informaram iam aumentar 3% nos postos. Ora digam lá se isto não é sincornia perfeita. Eu disse sim, CORNIA! Um baixa, ou outro sobe e assim se mantém o desiquilíbrio deste insano desgoverno.
País tropical... abençoado coqueiro...
Maledetti!
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Agora vamos ao Vaticano, e começo por reafirmar que sou fã do Papa Francisco e procuro seguir, tanto quanto a minha fraqueza mo permite, a palavra de Cristo.

Mas algo de estranho se passa no Reino da Dinamarca, perdão no Reino do Vaticano, quando a

Igreja Católica proíbe fiéis de jogar as cinzas dos mortos ou guardá-las em casa.

O descumprimento da medida pode impedir funeral do falecido!
A Igreja Católica ainda prefere enterrar os mortos, mas quando — por razões de higiene ou por vontade expressa do finado — se optar pela cremação, proíbe (!) a partir desta terça-feira, que as cinzas sejam espalhadas, distribuídas entre os familiares ou conservadas em casa. Segundo um documento escrito pela Congregação para a Doutrina da Fé – o famigerado e maldito para sempre, o antigo Santo Oficio - e assinado pelo Papa Francisco, a proibição se destina a evitar qualquer “mal-entendido panteísta, naturalista ou niilista”.
O ultraconservador líder da Congregação, o cardeal alemão Gerhard Müller, chegou a dizer durante a apresentação do documento: “Os mortos não são de propriedade da família, são filhos de Deus, fazem parte de Deus e esperam em um campo santo sua ressurreição”. 
Que terrível engano ou presunção. Quem pensa o cardeal Müller que é? O próprio Deus? Torquemada? Ou já está senil? Deve ter feito contato, profundo, com o seu parente Alzheimer!
Deus cedeu-nos um corpo, corrupto, corrompível, para aí depositar o seu Espírito. O Espírito pertence a Deus, o corpo às cinzas. Nós somos pó, viemos do pó e ao pó retornaremos.
O documento aprovado, intitulado Instrução Ad resurgendum cum Christo e que substitui um anterior de 1963, adverte que “não é permitida a dispersão das cinzas no ar, na terra ou na água ou em qualquer outra forma, ou a transformação das cinzas em lembranças comemorativas, peças de joias ou outros artigos” (1). E o documento vai mais longe: “No caso em que o falecido tenha sido submetido à cremação e ocorra a dispersão de suas cinzas na natureza por razões contrárias à fé cristã (2), seu funeral será negado”. A Congregação para a Doutrina da Fé justifica a elaboração de um documento tão drástico como reação às novas práticas na sepultura e na cremação “contrárias à fé da Igreja”. 
Segundo esta Congregação, as cinzas devem ser mantidas “como regra geral, em um lugar sagrado, ou seja, no cemitério, ou, se for o caso, em uma igreja ou em uma área especialmente dedicada para tal fim por autoridade eclesiástica competente”. Embora a Igreja admita que “não vê razões doutrinais” para proibir a cremação - “a cremação do cadáver não toca a alma e não impede a onipotência divina de ressuscitar o corpo” (3) -, o secretário da Comissão Teológica Internacional, Serge-Thomas Bonino, a descreveu como “algo brutal”, por se tratar de “um processo que não é natural, no qual intervém a técnica, e que também não permite que pessoas próximas se acostumem com a falta de um ente querido”.
Parece estranho que o Papa Francisco tenha pactuado com tamanho absurdo.
Onde assinalado com (1), a frase parece outra piada. Aliás de muito mau gosto. Desde os primórdios a Igreja tem feito milhões na venda de relicários, 99,999% falsos, como um pedaço do lenho da Cruz, que todos juntos devem ter alcançado milhares de toneladas de madeira, ossos de alguns santos, que tanto poderiam ser do santo como de um cachorro ou de uma vaca, pedacinhos da roupa usada por alguma santa, que ninguém sabe se ela a usou ou se foram comprados a metro num tecelão, e muitos desses relicários as pessoas usavam e ainda usam como uma jóia, pendurada no pescoço ou no pulso, numa caixa, num altar, etc. E agora vem dizer que não pode! Esgotou o estoque? Ou esqueceu de se desculpar, perante os incautos, sobre as toneladas de dinheiro que através dos séculos embolsou com  essas falsidades?
No ponto (2) o que será que os Alzheimers do Vaticano consideram “dispersar as cinzas na natureza por razões contrárias à fé da Igreja? Para já a Igreja não tem fé. Quem tem fé ou pode tê-la são os fiéis, e não há igreja nenhuma no mundo, nem haverá, que possa impor uma fé. Fé não se adquire como um relicário. Nem o relicário protege dos ataques e tentações do demo.
E acrescenta que pode negar o funeral. Absurdo, e crime contra a consciência e fé de cada um.
Eu já vivi este problema. Não perdi a fé em Cristo, mas abominei a hierarquia que se julga ainda com direito de queimar qualquer Joana d’Arc ou Jacques de Molay!
O que terão feito com as suas cinzas?
No ponto (3) vem um choradinho que hoje já só e aceite por... por quem?
A ressurreição dos mortos, queimados, cinzas espalhadas ou não, o que eventualmente, um dia, “ressuscitará” será o Espírito que se unirá ao TODO e NADA. Nada de corpos. Do pó vistes...
Por fim o senhor Bonino, a descreveu a cremação como “algo brutal”, por se tratar de “um processo que não é natural, no qual intervém a técnica, e que não permite que pessoas próximas se acostumem com a falta de um ente querido”.
O tal Bonino acha que a cremação é algo brutal, que não é natural, onde intervém a técnica, etc. Seria bom que ele se explicasse melhor, dizendo qual técnica usou a Inquisição, na fogueira da Joana d’Arc e de milhares e milhares de outros e outras infelizes, que tiveram, ou não, a coragem de não dizerem sem amém, técnicas da Igreja assistidas e aplaudidas por reis, cardeais, bispos e babacas em geral.
Nunca imaginei que o pensamento medieval continuasse a imperar no Vaticano e que obriguem o bom Papa a assinar absurdos.
Seria melhor que o cardeal Alzheimer e o secretário Bonino respeitassem o luto de cada um.
Não é por dispersar as cinzas que vamos esquecer os entes queridos. Eu sei bem disso.
Jamais seria capaz de erigir um Mausoléu em mármore e esculturas de Michelangelo, para depositar o corpo de qualquer dos meus entes mais queridos, só para exibir perante a sociedade o meu, imaginário, padrão financeiro.
Papa Francisco, a minha consideração por si não diminuiu. Mas deixou-me triste.
Pior, as igrejas dissidentes vão dar risada.

27/10/2016



domingo, 23 de outubro de 2016




África
Vida Vivida - 2

Mais algumas memórias, rebuscadas com saudade e tristeza. O trazê-las de novo à vida faz que não desapareçam.
Num dos últimos textos falei de um grande amigo, o Renato Lima, e só me faz bem relembrar mais uma pequena passagem da sua vida. Como já disse o Renato era um bom garfo e um razoável copo. Nada demais, e sobretudo um grande e alegre companheiro.
No tempo em que ainda se caçava, com disciplina e sem destruir o meio ambiente, lá fomos, num fim de semana, um grupo normalmente “capitaneado por outro Grande Amigo, o Zé Neto – José Ferreira Neto – grande caçador e também um magnífico companheiro.
Tanto o Renato como o Zé Neto teriam uns 15 a 17 anos mais do que eu, mas considerávamo-nos como irmãos.
Renato Lima aí por 1960 e... tal

Nesse dia, depois de muito penar, caçou-se um antílope, talvez um Sembo ou Nunce (Redunca arundinum), macho solitário, bem grandinho, que devia pesar uns 65 a 70 kilos. E sempre a carne destes antílopes era coisa de reis. Melhor, de imperadores!
De Portugal, por navio, um amigo tinha mandado ao Zé Neto dois garrafões dum vinho, safra “especial” da sua propriedade! Então, face a essa gulosa perspectiva assentou-se que seria em sua casa que se faria a almoçarada acompanhada da viajada preciosidade.
Como eu era parte do espólio cinegético, propus levar mais um convidado, o Renato, que não conhecia os donos da casa.
A dona da casa, Arlete era uma excelente pessoa. Nunca a vi reclamar de nada, e sempre recebia os amigos com uma especial lhaneza. Uma senhora e mãe de família que sempre admirei e muito estimei. E tinha um ótimo cozinheiro.

Zé Neto, grande amigo e grande caçador

Antes do almoço chegar à mesa, abre-se o primeiro garrafão... estragado! E o segundo. As rolhas não aguentaram a viagem e o tal “magnífico”... azedou. (Por isso o bom vinho de garrafão seguia de Portugal para África com um grande capacete de gesso). A garrafeira da casa supria esse lamentável prejuízo, além das Cucas que eu podia providenciar. Entretanto avança, sala dentro o magnífico Sembo, assado, lindas batatas bem coradas à ilharga, que se foi sempre regando, indiretamente, com uns quantos copos de vinho ou de cerveja.
No fim do pantagruélico repasto, o Renato, com os seus 90 ou mais kilos estava com um tremendo peso nas pálpebras e só conseguiu dizer que precisava dormir um pouco. Ninguém causou problema.
- Nesta casa está à vontade.
Foi-se deitar na cama de um dos quatro filhos e roncou umas boas duas horas! Quando acordou estava envergonhadíssimo. Mas fazer cerimónia, em Angola, entre amigos, era coisa inexistente, apesar de ir dormir a sesta quando se vai pela primeira vez a casa de alguém...

Voltemos ao meu secretário, o famoso António
Como disse em texto anterior, o António era o guardião da minha casa quando eu me ausentava de Benguela, antes da minha mulher lá ter ido.
E também contei que tinha ido fazer um estágio numa fábrica na África do Sul. No final do estágio, e do jantar de despedida, a fábrica entregou a cada um seu diploma, constando que tinha feito o estágio, de tal a tal dia, assinado por dois diretores, e autenticado, como era de praxe, com um selo de lacre e duas fitinhas de gorgorão (também sei coisas femininas!) nas cores vermelha e amarela, as cores das máquinas. Muito bonitinho.
Um mês ou dois depois do regresso, da sede da Lusolanda, em Luanda, o patrão mandou dizer-me que devia emoldurar o diploma e colocá-lo na loja para valorizar a nossa organização perante os clientes. Tudo bem.
Como a casa era espaçosa para um jovem casal, um dos quartos serviu durante muito tempo para guardar as tralhas que aos poucos se iam arrumando. Em casa dei volta a tudo, sobretudo nesse quarto da arrumação, que era uma desarrumação, com o pouco que tínhamos no princípio da nossa vida, mas o tal de diploma, aparecer é que nada. A minha mulher já estava lá em casa, e nada sabia do bendito diploma. Mistério!
Mesmo com a dona de casa em casa, no início da sua estadia, quase todos os dias, depois do trabalho o António ia até lá, para ajudar a arrumar caixas e minudências, ganhando assim mais um trocado.
O António era um tipo sensacional.
Foi ele que me ajudou a desencaixotar os trastes, idos de Lisboa, que em Angola viraram imbambas ou bicuatas.
Bom a conversa está muito boa, mas e o diploma? Cadê o diploma?
É verdade. Depois de me certificar que não o encontrava, conclui que só o António poderia saber do seu paradeiro, visto ser a única pessoa, além do casal, que tinha acesso a nossa casa, e àquele quarto, donde nunca, nunca, tirou uma migalha. Já tínhamos contratado um cozinheiro, mas além mim e da minha mulher só ele entrava no quarto que tinha espalhado no chão um monte de coisas, como louças, livros, bibelôs, etc. Não só não tínhamos móveis suficientes onde os guardar, precisavam de ser separados e arrumados, mesmo que ficassem no chão.
Ali, algures, por cima daquela tralha, daquela bagulhada, tinha sido guardado o diploma.
O António quando lhe falei nisso fez-se vermelho (é verdade, sim, os pretos também coram, lá por terem a pele escura, vê-se muito bem) e quase jurou que não tinha visto o tal papel bonitinho.
Cacei o mistério!
- António! Eu quero esse diploma aqui, amanhã! Sem falta.
No amanhã o diploma estava lá! Um pouco amarrotado com a viagem de ida e volta até casa do António, claro, mas... o lacre e as fitinhas de gorgorão não regressaram!
Aquelas fitinhas e o lacre foram mais fortes do que a resistência do António contra tentações! Pratos, copos e outros quejandos ele conhecia bem, havia visto muitos toda a sua vida, mas um papel com aquele enfeite bonito...
Resultado: não se emoldurou o diploma, não voltei a falar nele ao pobre homem que caíra naquela terrível tentação, guardei-o por muito tempo, amarrotado e sujo, porque a história me enternecia, e por culpa agora das nossas muitas outras viagens mundo fora, com a casa às costas, o diploma... sumiu!
Ficou a saudade. Grande António! Saravá António!

--- * ---

O cozinheiro e as pescadinhas
Como não é difícil de imaginar a dona da casa... não demorou a ficar à espera do primeiro filho. E passou por aquela clássica fase do enjoo!
Um dia chego a casa para almoçar, mamãe deitada, enjoada, nem sequer podia ouvir falar em comida! Almocinho, que é bom, nada!
O cozinheiro aguardava instruções, paciente, sentado na mureta exterior da entrada da cozinha, em equilíbrio de fazer inveja ao Cirque du Soleil, e a uns 4 ou 5 metros de altura dormia que nem um justo, que era.
Passo-lhe a mão por fora, para que ele não se assustasse quando o chamasse, não fosse cair dali abaixo, dou um grito (meio grito!) perto do ouvido dele, que em vez de se assustar, abriu tranquilamente os olhos.
- Sebastião (faz de conta que ele se chamava assim), não tem almoço!
- Não, patrão.
- E agora?
- Se o patrão quiser eu vou ali ao mercado e compro umas pescadinhas.
- Quando custam?
- Um e quinhenta, seis. Achei um disparate. Seis pescadinhas por um angolar e meio! Dei-lhe meia cinco, isto é, dois e cinquenta, e lá foi ele. E eu fiquei à espera que ele voltasse a dizer que o dinheiro não tinha chegado.
O mercado era perto da nossa casa. Não tardou muito o Sebastião voltou com as seis pescadinhas, lindas, fresquinhas, enfiadas num junco e... um angolar de troco!
Fê-las de “rabo na boca”, batatinhas cozinhas, eu almocei correndinho e voltei para o trabalho.
Mamãe, mesmo o cheiro, magnífico, das pescadinhas não quis testar!

Ah! Como eram lindos aqueles tempos!
E como era, e ainda é, maravilhoso o peixe daquelas águas!


23/10/2016

terça-feira, 18 de outubro de 2016



África
Vida Vivida

Quando dizíamos à nossa primeira neta para ela “puxar pela cabeça”, ela tentava, com as mãos, puxar a cabeça para cima!
Agora sou eu que puxo pela cabeça para ver o que ainda lá dentro encontro de historinhas “daquele tempo”, quando o mundo girava à nossa volta, visto que agora somos nós que giramos à volta da canalhice institucionalizada!
Eram bons tempos? Eram, sim, sem dúvida.
Sem computadores, internet, desenfreada especulação financeira, os povos primitivos, alguns, ainda felizes e sem fome, ignorados pelos “simpáticos” exploradores/cooperantes, havia alguns resquícios de escravidão, como hoje continuam, enfim, mas quer parecer que havia mais respeito, mais ética, mais hombridade nas relações, individuais e mundiais.
Mas vamos às historinhas.

A primeira galinha “à cafreal”!
Chegado a Angola, Luanda, começo de agosto de 1954, quinze dias depois fui levado pelo meu colega, e chefe (!), a uma volta pelo interior para conhecer e me acostumar àquela terra.
Primeira visita na Quibala.

Uns irmãos, transmontanos, cujo nome já estão fora do meu arquivo cerebral, estavam a montar, ou organizar, uma fazenda. O mais novo assumiu essa tarefa enquanto os dois mais velhos continuavam a trabalhar para arranjarem o necessário dinheiro. A visita baseava-se numa consulta para a compra de um trator, e implicava uma demonstração.

1954 – Com o Soba da Quibala

De manhã, trator a postos, um pouco de terreno arado, discussão sobre os mais indicados implementos, condições de pagamento e outros assuntos chatos, chegou entretanto o meio dia e todos com os estômagos a reclamar.
O preposto cliente tinha um único ajudante angolano para as todas tarefas necessárias, inclusive cozinhar. Era o Lisboa.
Enquanto o fazendeiro foi à “cidade” buscar uns garrafões de vinho, o meu chefe e eu ficámos a colaborar com o “mestre” Lisboa para apanhar uma das muitas galinhas que já ali criavam, à solta. Foi uma festa! O Lisboa fazia de goleiro enquanto nós corríamos atrás delas e as encaminhávamos para que ele as apanhasse. Lisboa voava, mas as ladinas aves sempre “metiam” gol. Eu já chorava de tanto rir, quando finalmente ele cai em cima de uma penosa, mete-lhe a indispensável faca na goela, depena-a e começa a assar, sempre com um punhado de penas na mão, que mergulhava num copo cheio de gindungo (piripiri) e pincelava a dita.
Entretanto o fazendeiro chegara com o vinho, fomo-nos sentar dentro da cubata improvisada, mas que, à boa moda transmontana, tinha pendurado do teto um magnífico presunto! Talvez até de Chaves.
Lisboa junto ao lume virando e pincelando a galinha, e nós, confortavelmente sentados em caixotes ou pedaços de árvores, cortando pequenas lascas do presunto, uns pedaços de pão (bom) e bebendo uns tragos.
Chegou a galinha! Linda. Gorda. Bem assada. Rapidamente destroçada e dividida, parte entregue ao artista da cozinha, e vá de saborear aquela maravilha.
O gindungo fora generosamente aplicado. As beiças ardiam desde perto do nariz até quase ao queixo, como se fossem elas que tivessem estado no fogo. O vinho, tinto de garrafão de capacete, num instante secou.
Já não lembro se o meu chefe fechou negócio. O Norte de Angola era área dele. A minha ficou o Sul.
Mas o que até hoje lembro com uma saudade imensa é do Lisboa e da galinha. A melhor galinha que comi em toda a minha vida!
*          *          *
O meu “ajudante”.
Na Lusolanda, o meu primeiro trabalho em Angola, em Benguela (terra de tanta saudade), eu era o responsável pelo departamento de máquinas agrícola na metade sul de Angola.
Na loja, que incluía, no stand de vendas, o meu lugar de trabalho (mesa e um pequeno armário com catálogos e arquivos), depósito de peças lá atrás e mais um pátio para outras máquinas e caixotes ainda por abrir, além de mim, agora “chefe”, trabalhava o encarregado do depósito, o Mário Brás, um pseudo comunista, que me divertia em filosofias e discussões políticas, e o ajudante, António, super humilde, atencioso, sempre pronto a atender qualquer pedido que lhe fizesse.

O António (ao fundo, a minha mesa e a estante)

Volta e meia precisava duma ferramenta, chamava o António, e dizia:
- Vai lá dentro e traz-me...
Não tinha tempo de dizer o resto. António, prestimoso, corria lá dentro para ir buscar... o que?
Apanhava a primeira coisa que lhe viesse à mão, e voltava então, ar envergonhado, mãos atrás das costas, segurando qualquer objeto! Eu tentava ver o que ele trazia e quando descobria, dizia-lhe
- António: você nem ouviu o que disse “Eu queria um martelo!”
António, sorrindo, feliz, mostrava então que tinha trazido “o” martelo! Mas não era o que eu precisava.
- Muito bem. Agora escuta e não vai embora. Traz-me um alicate (ou qualquer outra coisa).
Vapt, vupt, António em poucos segundos estava de volta com o requerido alicate!
Esta cena repetiu-se inúmeras vezes, mas o António nunca deixou de querer resolver tudo a correr.

António, secretário particular
Os primeiros quase três meses em África, vivi-os “solteiro”. Já casado, tive que para lá seguir sozinho porque nos planos da empresa havia, além de uma estadia de duas semanas na África do Sul, num estágio na fábrica da Massey-Harris em Vereeniging, cerca de 50 kms a sul de Johannesburg, e percorrer parte do interior de me estava atribuído, para começar a conhecer o país, e, óbvio, alguns agricultores.
De Portugal levara uns quantos móveis, tinha alugado casa, que fui montando com a ajuda do “secretário particular” que nas minhas ausências dormia lá para “tomar conta”.
Estando em Benguela o programa era simples. No fim do dia de trabalho, montava na minha bicicleta, António sentado no quadro e lá íamos até casa.
À noite saíamos, na mesma condição veicular, levava o António até perto da casa dele e eu ia jantar.
O “chefe”, sua viatura (de dois lugares e um “cavalo” de força)
 e a casa alugada (o andar de cima – ótimo!)

Uma noite, cortando caminho por ruas pouco frequentadas (eram todas assim, mas...) o farol da bicicleta aceso, surge no meio da rua uma cobra! Imensa! Aí com um metro e pouco? Talvez. António saltou logo fora e afastou-se como se tivesse visto o demo! Eu aproximei-me com a bicicleta. Consegui pôr-lhe a roda da frente em cima, atrás da cabeça, e... e depois? Ah! E depois disse ao António para arranjar alguma coisa, um pau, por exemplo, para matar a dita e aterrorizante serpente, que ninguém sabia se era venenosa ou não!
António lá encontrou a conveniente arma, mas não era capaz de se aproximar!
Naquele tempo o traje para andar em África era simples: calção e bota grossa, daquelas que se ensebavam com sebo de carneiro... e eram magníficas. Como a cabeça da bichinha estava imobilizada não foi difícil resolver o “perigo” com uma forte pisadela.
Só então, e depois de atirarmos o cadáver para um canto, António se aproximou, entrou no seu lugar na “viatura” e seguiu até casa!

Ainda tem outra história com o António, já contada no meu livro Se as minhas Imbambas falassem, escrito entre 1999 e 2000, mas vou deixar para a próxima!


17/10/2016 

quinta-feira, 13 de outubro de 2016



Incursões dentro de uma cabeça cansada


Catolicismo, de católico, do grego Katholikós, geral, universal. Até aqui todos sabemos.
Ser católico não necessita obedecer à hierarquia de Roma, nem tão pouco ser cristão.
Basta sentir e viver a universalidade do ser humano, de respeitar e tratar TODOS como irmãos, deixando que cada um faça as suas orações e ou meditações como, quando e a quem entender.
Sempre respeitando a liberdade de qualquer Outro, e sempre o considerando irmão.
E assim católico, recorrendo ao valor etimológico da palavra poderá ser qualquer um desde cristão a animista, judeu ou muçulmano, quando põe os valores universais acima dos seus.
Mas, desde os tempos atrás dos tempos, há uma pergunta que não cala, nem responde, perturba muito, até os que se dizem ateus ou mais dissimulados os agnósticos que preferem não pensar e simplesmente dizerem que “nada sabem”:
Deus será um Ser? Que Ser? Só uma Força? De onde vem essa Força?
Deus será bom? Será um Deus da guerra que só protege os hebreus? Será como Alá que o Profeta decidiu interpretar e à sombra do Qual se mata o, para eles, não crente? Crente em que? Em quem?
Ou será a filosofia chinesa e hindu, o Tudo e o Nada, para que cada homem se liberte e se encontre dentro de si mesmo?
Deus é a natureza, Tudo e Nada! Tudo e todos.
O que não é, quase de certeza, porque certezas neste campo não existem, é a imagem daquele velhinho, ar bondoso, barbas brancas, pendurado numa moldura, para onde se olha quando se lhe quer pedir algo!
Pedir? Rezar?
As perguntas avolumam-se. O que é rezar? Recitar palavras impressas e difundidas desde há milhares de anos por milhões de pessoas e que se repetem, muitas vezes por obrigação?
Pedir a Santo António que lhe encontre um par? É bonito ter fé, mas há preces que são autênticas vigarices, como por exemplo quando alguém quer “negociar” um favor divino e em muitos casos ainda lhe pedem para pagar por isso!
Rezar é falar para dentro de si mesmo, ou quando a Fé é muito grande, como uma velhota angolana que eu vi, há muitos anos, em Luanda, na Igreja da Nazaré, a discutir em voz alta com a imagem da Virgem, porque ela já ali tinha ido rezar uma porção de vezes, pedindo auxílio já não sei para que, mas a ajuda não acontecia. E a boa velhota discutia, em voz alta, com a Virgem como discutiria com qualquer outra pessoa. Maior fé é difícil, e não deixou de me impressionar. Gostaria de ter tamanha fé.
Em que?
Quando, em prece nos dirigimos ao “Senhor”, teremos consciência do que estamos a fazer, ou somente a pedir? Pedir que nos faça melhores pessoas para logo em seguida continuarmos a ser os mesmos, como é habitual fazer-se na passagem do ano quando se “juram promessas” de nos redimirmos?
Criar a ilusão de que não vamos mais nos interessar pelos dispensáveis “bens” terrestres, quando continuamos a querer um carro melhor ou mais um dinheirinho para compras de coisas que não nos fazem falta?
Ou para tentar imobilizar o nosso Ego, dedicar todo o nosso tempo disponível a “Não-Agir”, meditar e darmo-nos aos Outros?
Como pode alguém encontrar-se dentro de si mesmo, pelo Não-Agir? Para nos darmos aos outros temos que Agir! Daqui o Tudo e Nada, inseparáveis
Como pode alguém ausentar-se do mundo, para, com muito egoísmo, se dedicar à procura do Nirvana individual? Mais uma vez a sublimação do nosso Eu é derrotar o egoísmo.
Como pode ausentar-se e afastar-se daqueles que, cada dia mais, precisam de quem lhes dê a mão?
Não-agindo na matéria, derrotar o egoísmo e encontrar dentro de si a paz absoluta, só quando se entrega inteiramente aos que o rodeiam.
Jesus veio.  Para servir e não para trazer dar proveitos e privilégios a quem quer que seja.
Veio e, em oposição à antiga lei onde o ser “bom” era não fazer aos outros o que não gostaria que lhe fizessem, deixou a Nova Lei, a Boa Nova: FAZ, age, ajuda o teu irmão, começa pelos mais necessitados, sê caritativo, o que não significa dar esmola e virar costas, mas DAR-SE sem exigir nada em troca.
A cabeça fica meia tonta com tanto pensar em todas estas coisas que no fundo se resumem a uma só: cuida do teu irmão! E do meio ambiente. Sem este, são, tudo estará perdido.
Para os que invejam, cobiçam e lutam pelas “preciosidades” vãs e terrenas, os Ego-istas, deviam ouvir mais vezes Carmina Burana, uma série de poemas medievais (sec. XI - XII) musicados magistralmente por Carl Orff. Além de ouvirem a música tentar assimilar bem a sua letra, sobretudo o poema de abertura e final:
Oh! Fortuna!
És como a lua, mutável, sempre aumentas ou diminuis;
A detestável vida, ora oprime e ora cura para brincar com a mente;
Miséria, poder, ela os funde como gelo.
Sorte imensa e vazia, tu, roda volúvel és má,
Vã é a felicidade sempre dissolúvel, nebulosa e velada também a mim contagias;
Agora por brincadeira o dorso nu entrego à tua perversidade.
A sorte na saúde e virtude agora me é contrária.
Dá e tira mantendo-me sempre escravizado;
Nesta hora, sem demora tange a corda vibrante; porque a sorte abate o forte, chorai todos comigo!
Eu lastimo pelas feridas da fortuna, choro as feridas infligidas pela fortuna com olhos lacrimejantes,
Pois seu tributo de mim cobra agressivamente;
Na verdade, está escrito que a cabeça coberta de cabelos
A maior parte das vezes revela-se, quando a ocasião se apresenta calva.
No trono da fortuna eu sentara, elevado, coroado com as flores multicoloridas da prosperidade;
Apesar de ter florescido feliz e abençoado, agora do alto eu caio privado de glória.
A roda da fortuna gira; eu desço, diminuído; outro é levado ao alto;
Lá no topo senta-se o rei no ápice? Que ele tema a ruína!
A roda da fortuna, no codex dos Carmina Burana.
Mas se procuram a Verdade, a humildade e a caridade podem cantar com alegria o Aleluia de Handel:
O reino deste mundo já passou a ser de nosso Senhor, do Cristo.
Ele Reinará para sempre;
Rei dos Reis (Para sempre e sempre, aleluia, aleluia) 
E grande Senhor (Para sempre e sempre)
Aleluia, Aleluia


12/10/2016

domingo, 9 de outubro de 2016



De Angola, com muita saudade

No meu livro “Contos Peregrinos a Preto e Branco” faço um pequeno e extremamente incompleto “retrato”, entre outros, de um grande amigo que há tempos descansa das agruras da vida.
Sempre o recordo com imensa saudade e, apesar de ter perdido a sua companhia, é impossível não sorrir, ou rir, lembrando a sua contagiante alegria e muita amizade.
Houve uma época da minha vida em que fui, durante alguns anos o responsável comercial das famosas, e muito saudosas cervejas
 .
Uma ou outra vez reunia-se todo o pessoal comercial para lhes falar sobre técnicas de venda, psicologia do vendedor e do comprador, etc., essas coisas um bocado “chatas” sobretudo para quem tinha o “carrego” de botar faladura.
Duravam esses “cursos” talvez uma hora de manhã e outra à tarde, de que já não recordo bem porque se passaram há... mais de meio século!
Não havia computadores, nem modernices, e então munia-me de folhas de papel almaço com frases chaves, sobre isso tentava transmitir alguma coisa e, sobretudo, segurar o máximo de tempo possível a atenção dos pacientes ouvintes, sem os cansar muito!
Técnica de vendas é como qualquer técnica: tem que se estudar e aprender, apesar de haver “vendedores natos”, como natos há engenheiros, curandeiros, escritores, etc.
O mais velho dos que tinha que me ouvir, nas sessões da parte da tarde, dava-lhe um peso nas pálpebras, a que se costuma chamar sono, a que não conseguia resistir; um dos mais antigos empregados nessa Companhia, sempre como Encarregado das Relações Públicas, o Renato Lima.
O Renato, além de ser um ótimo companheiro e um grande amigo, era um bom garfo, e apreciava, como ninguém, um bom petisco.
Uma das frases chaves, que deveriam ser repetidas até hoje, todos os dias, em todo o lugar, é:
SE QUERES COMANDAR A NATUREZA TENS QUE OBEDECER ÀS SUAS LEIS”.
A seguir era indicado o autor da frase: Francis Bacon!
O Renato só ouviu o bacon! Nada tinha ouvido até ali. Abre os olhos e diz:
- Ah! Bacon eu adoro.
Foi uma gargalhada geral!
Em nossa casa, Luanda, criou-se a certa altura aquilo que se chamou o “almoço dos solteiros”. Como era comum os portugueses a cada três ou quatro anos terem direito a férias na “Metrópole”, muitos casais mandavam a mulher e filhos à frente, muitas vezes para aproveitarem algum período de aulas em Portugal, ficando os maridos um tempinho “solteiros”.
O tal almoço não obrigava a convidar ninguém porque a regra era simples: quem estiver solteiro às quartas feiras podia aparecer.
Nunca sabíamos quantos convivas viriam, mas nunca isso criou problema.
O Renato era solteiro... mesmo. Divorciado, só bem mais tarde arranjou uma companheira, excelente pessoa, baixinha, com quem ficou até fechar os olhos, a quem ele chamava, carinhosamente, “o pincelinho”!
Quando podia aparecer para o almoço, de manhã telefonava a minha mulher fazendo sempre a mesma pergunta:
- O almoço é do livrinho?
Livrinho era, e ainda é até hoje, o livro de receitas, escrito à mão com tudo quanto de boa mesa se havia recolhido até à altura, de ambas as mães, algumas tias e até avó, que Dona Bela lia, ar de magister, ao cozinheiro, para que este seguisse as convenientes e muito boas instruções culinárias. Depois deixava a cozinha, e o cozinheiro que, à medida que tinha ouvido as instruções culinárias e os vários passos e tempos para a feitura do petisco, a tudo assentira com a cabeça como se tivesse decorado o “andamento” do concerto. Por fim dava o seu toque, quase sempre tocando um tanto ou quanto no garrafão de vinho tinto, à disposição da cozinha (e do cozinheiro, que num tempo foi o “magnífico” Miguel!) e do patrão que nunca deixou de, às refeições, mesmo tendo cerveja de graça, devido à função, beber esse incomparável remédio vinífero.
Esse telefonema era a forma simpática com que o Renato marcava presença nesses almoços!
Quando, como tantos de nós, foi obrigado a sair de Angola, passou pelo Brasil onde não se deu bem e “retornou” a Portugal. Já estava entrado em idade e as oportunidades de trabalho não apareciam, até porque naquela altura os amigos também sofriam a era pós- 25 de Abril e não o conseguiam ajudar. Não tardou que a saúde se deteriorasse.
Um belo dia, em Lisboa, numa rua, cruza-se com uma senhora da idade dele, aí pelos setenta anos, que lhe cai nos braços! De entrada o Renato não a reconheceu, mas logo viu a sua primeira namorada dos tempos de adolescente e que nunca mais tinha visto desde...! Foi uma festa a o que “Pincelinho” assistia sem saber o que dizer.
A antiga namorada então diz-lhe que tinha casado, o marido fizera uma boa fortuna, já tinha morrido fazia tempo, e vivia sozinha, felizmente com bastante dinheiro.
Fez uma proposta, no mínimo inusitada: Venham os dois viver comigo (“Honnit doit...”). Tenho uma casa grande, dinheiro e vocês não têm com que se preocupar com finanças.
Proposta aceite. Lá vai o Renato e seu Pincelinho para novo e aconchegante Lar.
A Saúde agravou-se e não tardou a ter que ser internado. A ex, sempre carinhosa, fez com que fosse para uma das melhores clínicas de Lisboa. Cara. Mas para ela isso não significava nada.
Ainda o fui lá visitar. Reconheceu-me, mas pensava que estava em Luanda. Fechou os olhos pouco tempo depois e as “duas viúvas” do Renato continuaram a viver juntas, amparando-se assim na terceira idade.
Bonita história de Amor.

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Nessa longínqua e simpática época, precisamente em 1963, chegou a Luanda o Movimento dos Cursos de Cristandade.
Com algum esforço e argumentação pouco convincente me apanharam, e me meteram três dias numa espécie de clausura com mais uns trinta leigos e meia dúzia de padres.
Lá dentro fomos divididos em grupos de dez, tendo cada grupo um padre que fora convidado, não para ouvir a palavra do Evangelho, mas para apreender o Movimento e poder expandi-lo.
No meu grupo ficou um padre, escuro como um tição, idade indefinida, baixinho, cara redonda, batina sempre impecavelmente branca, mas que não parecia ter quaisquer intenções de mostrar os dentes, não só para os leigos como até para alguns dos outros padres.
Enquanto lá estávamos chegou-nos, à boca fechada, que aquele padre, já cónego, teria ligações com o MPLA, considerado na altura mais ou menos como o principal grupo terrorista!
E o “Curso” chegou ao fim. Reunião final, domingo já noite, todos reunidos, onde foi pedido a cada um que desse o seu testemunho da vivência que acabara de ter.
Eu, que me entusiasmo com relativa facilidade – pelo menos quando andava pelos trinta anos! – saí com o coração cheio.
Mas todos estávamos preocupados com a cara fechada do cónego, receando até que viesse a dizer que aquilo tinha sido uma perda de tempo. Quando chegou a vez de se manifestar, levantou-se, tranquilo, e disse:
- Pela primeira vez na minha vida vi uma marreta que pode derrubar o muro que separa os brancos dos pretos.
Nada mais precisou dizer para entusiasmar aquele grupo, todo.
Eu logo quis aproximar-me dele, e passei a assistir às missas que ele dizia. As suas homilias eram algo que ninguém queria que acabassem. Misturava cultura africana com a europeia, as fábulas e contos tradicionais, acabando sempre por lhes dar o sentido da Boa Nova.
Homem duma cultura e inteligência raras.
Um dia procurei-o e perguntei-lhe se ele queria fazer o favor de almoçar um dia em nossa casa. Disse logo que sim.
E apareceu, batina quase brilhando de tão branca, um sorriso que enquanto não apareceu a todos preocupou, e logo acarinhou os nossos filhos, na altura ainda só (!) cinco.
A nossa casa viveu um momento grande. Os nossos filhos não largavam o senhor a quem chamavam de tio.
E assim o cónego Eduardo André Muaca, entrou para a nossa família, como o tio Muaca, e quando nos encontrávamos perguntava: Como estão os meus sobrinhos?

Em 1967, no batizado do "sobrinho" Tiago

Um dia, 1966, desapareceu de Luanda, de Angola. Sabíamos dos seus contatos com dirigentes do MPLA e imaginei que tivesse sido trama da famigerada PIDE. Fiquei furioso e triste. Consegui o endereço dele, estava em Roma, e escrevi-lhe, querendo saber o que se passava.
Respondeu-me que tinha sido chamado por Sua Santidade, o Papa Paulo VI para estudar, licenciou-se em Filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana em 1968. Em seguida foi para Madrid diplomar-se em Pastoral Catequética e frequentou o curso de Sociologia Religiosa em Lovaina na Bélgica. Regressado a Angola, eleito Bispo Titular de Isola e Auxiliar de Luanda e ordenado a 31 de Maio de 1970 na igreja de S. Paulo.
Foi recebido com imensa alegria.
Na véspera da sua ordenação, em Luanda, ainda conseguiu um tempinho para passar em nossa casa e deixar-nos um convite para assistirmos à cerimónia, nos lugares reservados à “família”!
Foi o primeiro padre natural de Angola, de Cabinda, a ser ordenado bispo.
Em 1973 foi nomeado Bispo de Malanje. Viveu momentos dificílimos na fase da transição para a independência de Angola com calúnias, ameaças e detenções, que abalaram muito a sua saúde. A detenção na qual foi ameaçado de morte foi na Missão de Lukembo na diocese de Malanje.
Em Agosto de 1975 é nomeado Arcebispo-Coadjutor de Luanda e em janeiro do ano seguinte passou a Arcebispo Metropolitana cargo que exerceu durante dez anos (1975-1985) e que por motivos de saúde pediu a sua dispensa ao Papa João Paulo II.  
Muito padeceu nesta situação. Com a proclamação da independência a situação mudou da noite para o dia. Devido a eclosão da guerra houve uma grande fuga das aldeias para as cidades, um êxodo de milhares de europeus para Portugal, uma fortíssima diminuição do pessoal missionário. Foram confiscados e ocupados os internatos masculinos e femininos. Também foram tomados e saqueados os edifícios, residências missionárias e missões. As estruturas pastorais, sociais, económicas ficaram danificadas, é neste quadro que D. Eduardo Muaca se encontrou quando ascendeu a Arcebispo Metropolitana.
Não admira que a sua saúde não tivesse aguentado.
Guardo como preciosos momentos algumas cartas que nos escreveu.

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Porque escrever duas pequenas memórias, de duas pessoas tão diferentes, e juntá-las?
Em primeiro lugar porque ambos já partiram faz tempo, e continuam a fazer-me muita falta.
Depois porque sempre lembro que o dia 9 de outubro é o aniversário do nascimento dos dois.
O Renato deveria fazer talvez cem anos. Há cerca de trinta nos deixou.
Dom Eduardo Muaca faria 92.
Vou beber hoje, já não às suas saúdes mas às minhas saudades.
Não tarda que os vá encontrar.
Que bom ter tido estes amigos.

9 de outubro de 2016